Crônicas

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MARGI MOSS

Margi nasceu em Nairóbi, no Quênia, onde teve uma infância de sonhos, com um pano de fundo excepcional – aquelas paisagens infinitas, exibidas no memorável filme Entre dois amores.

Desde pequena, o rugido do leão ou o bramado do elefante faziam parte de sua vida e ela continua até hoje apaixonada pela vida selvagem e pela natureza. Não é estranho que seu destino preferido no Brasil seja o Pantanal!

Licenciada em Letras pela Universidade de Saint Andrews, na Escócia, veio para Rio de Janeiro em 1979 em busca do calor tropical de sua infância. Ficou: e agora não pode mais se imaginar morando em outro país. Assumiu de vez a paixão pelo Brasil do Norte ao Sul, tornando-se brasileira. Trabalhou durante vários anos no Rio de Janeiro para a British Airways (em terra), tendo assim a oportunidade de visitar vários outros países do mundo antes das viagens feitas com Gérard, seu esposo.

Ao conhecer Gérard em Búzios em 1985, não podia imaginar que as horas passadas dentro de aviões aumentariam cada vez mais – só que agora, em aviões de pequeno porte. Pouco antes de decolar para a volta ao mundo em 1989 no monomotor Sertanejo, ela tirou o brevê de piloto privado mas, na divisão de tarefas a bordo, acabou largando o manche nas mãos do marido, preferindo “pilotar” a câmera fotográfica e a caneta. Escreveu cinco livros sobre as viagens e os projetos do casal (veja em Livros), além de matérias em várias revistas nacionais e internacionais.

Sempre foi apaixonada também pelas aves e passarinhar agora virou um hobby sério. Participa do site brasileiro www.wikiaves.com.br, um excelente ‘dicionário’ das aves brasileiras.

Um olhar sobre as aves e as observadoras

uando eu morava num apartamento no Rio de Janeiro muitos anos atrás, instalei uma pequena mesa na varanda, onde todo dia eu colocava bananas para as aves. Também, no galho de fícus plantando no vaso, pendurei um bebedouro para os beija-flores. Não sei como, numa grande selva de pedra, os passarinhos não demoraram para descobrir a nova fonte de alimento.

As espécies que vinham diariamente comer as frutas eram principalmente bem-te-vis, sanhaçus-cinzentos e cambacicas. As cambacicas são espertas: aproveitam para comer as bananas e beber no bebedouro, concorrendo com os beija-flores. Quando me esquecia de tirar o bebedouro à noite, os morcegos se aproveitavam da água adocicada.

Uma vez, ao ver esses vultos indo e vindo ao bebedouro na penumbra da varanda, uma amiga me disse: “não sabia que os beija-flores voam à noite”. Fiquei na minha, inclusive concordando com a cabeça e sem corrigi-la, pois, ao saber que eram morcegos, ela teria um ataque de nervos e iria embora rapidinho.

… Um belo dia, eu estava reabastecendo o comedouro quando levei um susto. Um gavião mergulhou ao meu lado para caçar um papa-capim…

Anos depois, me mudei para uma casa em Brasília. Fiquei surpresa com a quantidade de espécies diferentes de aves que frequentam as áreas verdes da cidade. Instalei um comedouro no jardim. Construímos uma caixa de madeira usada sobre quatro apoios altos que colocamos numa área aberta da grama para melhor observar as espécies que vinham. Eu botava sementes como painço e alpiste no “andar” de baixo, protegidos da chuva pelo “andar” de cima, onde colocava bananas, mamão e manga.

Muitas aves começaram a frequentar o comedouro, visitando ambos os andares. Entre as frugívoras que frequentavam o andar de cima, as mais comuns eram os bem-te-vis, os gaturamos, os sabiás, os sanhaços e várias espécies coloridas como os saís e as saíras. No andar de baixo, onde havia as sementes, os fregueses eram os baianos, canários, rolinhas e até tizius.

Um belo dia, eu estava reabastecendo o comedouro quando levei um susto. Um gavião – até hoje não sei qual foi, pela rapidez que passou – mergulhou ao meu lado para caçar um papa-capim. Nesse momento, me dei conta de que meu comedouro também iria atrair os gaviões que se alimentariam das presas fáceis que eram essas pequenas aves, que vinham, com toda a confiança, comer os alimentos oferecidos.

É fascinante observar a hierarquia de quem tem o direito de comer primeiro. No meu comedouro, quem é a mandachuva é a pipira-preta.

Várias espécies de gavião, incluindo o carcará, que é bem comum em Brasília, têm o hábito de caçar passarinhos para comer. Também há uma espécie de coruja muito pequena, a caburé, que caça os passarinhos em plena luz do dia. São bem fofas para nós humanos, mas são odiadas pelas outras aves. Ao encontrar uma escondida na folhagem de uma árvore, todos – desde sabiás, sanhaços, beija-flores, joões-de-barro - se unem para fazer um escândalo estridente em torno da corujinha. Como ela conta com a discrição e a invisibilidade para o sucesso da sua caça, ela acaba desistindo e vai embora.

Eu não queria trair a confiança das aves que vinham, tranquilamente, comer em paz. No mesmo dia, mudei a posição do comedouro para outro lugar, mais discreto, protegido por árvores frondosas e cercado de galhos onde as pequenas se sentiam à vontade. O número de espécies que frequentava o comedouro só aumentava!

Nunca se sabe quem vai aparecer para comer. Já fotografei um soldadinho – um intrigante passarinho que é todo preto, exceto o seu capacete vermelho (eis o nome) – que é bastante comum nas matas da cidade, mas que vem raramente aos comedouros. Também flagrei no comedouro um gaturamo-rei, fazendo o primeiro registro conhecido dessa espécie no Distrito Federal.

É fascinante observar a hierarquia de quem tem o direito de comer primeiro. A gente pode pensar que os grandes têm prioridade. Mas, no meu comedouro, quem é o mandachuva é o pipira-preta. Quando chega esse casal (o macho é preto, a fêmea cor de ferrugem), todos – mesmo aves maiores – têm que esperar sua vez. Quando as pipiras estão satisfeitas, os periquitos-de-encontro-amarelo são prioridade na fila.

Há muitas formas de conviver com os pássaros livres. Mas observar os fregueses de um comedouro ou um bebedouro instalado na janela, na varanda do apartamento ou numa estrutura no jardim de uma casa, é muito legal!

inha amiga Isabel morou por muitos anos no centro de São Paulo quando era mãe de família. Ela sempre gostou da natureza de uma forma abstrata, impessoal. Uma caminhada no parque, uma semana na praia. Uma aventura na natureza selvagem era viajar para o Pantanal e a Amazônia.

Agora que os filhos seguiram seus caminhos, Isabel também decidiu seguir o seu coração e a busca pela paz. Ela foi morar num pequeno bangalô na costa paulista, perto de Ubatuba. A sua casinha, cercada de hibiscos amarelos e buganvílias vermelhas, é um pedaço ensolarado do paraíso à beira-mar.

Ela escolheu o novo lar devido à vista em movimento constante. Ao baterem na areia – swissssssshhhh – as ondas, cada uma do seu jeito, a hipnotizam. As árvores da Mata Atlântica acolhem a casa e suas folhas abanam como leques na brisa do mar.

Longe do agito da metrópole, ela começou a descobrir, com certa surpresa, o divertimento e o companheirismo que pode ser a convivência com as criaturas “selvagens” que vivem ao seu lado. Essa recente aproximação com a natureza tornou sua vida mais alegre.  

… Quando começamos a prestar atenção nos mínimos movimentos no jardim de casa ou no parque, percebemos uma surpreendente variedade de criaturas…

As primeiras visitas já chegam para o café da manhã. São as pequenas cambacicas, com suas barrigas amarelas rechonchudas. Assanhadas, dão pulos confiantes na mesa da varanda e avançam sobre as bananas e o mamão, no banquete matinal gratuito.

Logo em seguida aparecem os sanhaçus-do-coqueiro, de cor verde-musgo, que anunciam sua chegada com assobios e conversas alegres. Maiores que as cambacicas, dão um chega pra lá nos miudinhos e pulam a fila.  Atacam as frutas com bicadas apressadas, como se a Isabel fosse chegar de repente e botar todos para voarem.

No jardim, Isabel fez outras amizades. São os calangos que adoram se aquecer ao sol nas pedras perto da casa. Espreitam as redondezas atrás de algum inseto para beliscar e, ao mesmo tempo, estão sempre de olho para cima, prontos para fugir de predadores que possam mergulhar do céu.

Você acha estranho que uma dúzia de passarinhos e alguns calangos possam tirar a solidão de uma pessoa? Quando começamos a prestar atenção nos mínimos movimentos no jardim de casa ou no parque, percebemos que ao nosso redor vive uma surpreendente variedade de criaturas: aves, borboletas, besouros, rãs, lagartixas e muito mais.

Mas a paixão pelas aves é a mais cativante. Vai crescendo a vontade de ver e conhecer mais espécies desses seres ágeis, coloridos e, às vezes, barulhentos. No Brasil, temos a sorte de abrigar quase 2 mil espécies de aves. É grande a chance de ver uma novidade.

O fascínio pelas aves já se instalou na Isabel. Agora, por sua vez, ela vai instalar um comedouro em frente à sua casa. E as amizades aladas vão chegando!

ara comemorar o novo milênio, no dia primeiro de janeiro de 2000, Antonio, um criador de suínos na Serra Gaúcha, decidiu esculpir um desenho qualquer numa rocha de basalto que tinha na encosta do vale em sua propriedade. Armado com uma talhadeira e um martelo, começou a entalhar num bloco da pedra, sem nenhuma imagem específica em mente.

Os rabiscos sem propósito começaram a tomar a forma de uma ave voando com as asas bem abertas. Entusiasmado com o rumo inesperado da sua obra, ele entrou na onda pensando em uma pomba da paz. Parecia bem relevante para marcar o dia especial.

... Antonio passou mais uma hora esculpindo a rocha bem dura, quando terminou a gravura com a data, ele subiu o morro de volta para sua casa…

Enquanto talhava, teve a nítida impressão de que alguém estava observando tudo o que ele fazia. Olhava em volta, na mata, no capim alto, e não via ninguém. Nada se mexia. Nem gente, nem bicho. Continuou esculpindo, mas a sensação de que estava sendo espionado só se acentuava. Finalmente, ele olhou para cima. Lá, pousada no galho da araucária mais próxima, estava uma pomba branca olhando fixamente para ele.

Ele ficou estarrecido, tanto pela precisão do seu sexto sentido, como pela coincidência de ele estar desenhando uma ave. A pomba, por sua vez, não se espantou e parecia até gostar de ter companhia.

Intrigado por essa presença inesperada, Antonio passou mais uma hora esculpindo a rocha bem dura e a pomba ficou, sempre na mesma posição, observando-o. Quando terminou a gravura com a data, ele subiu o morro de volta para sua casa e, para sua surpresa, a pomba o seguiu.

Percebendo o quanto ela se sentia à vontade na presença humana, Antonio concluiu que deveria se tratar de um pombo-correio que havia se perdido.

Os pombos-correio são uma variedade derivada dos pombos-domésticos. Dotados de um poderoso instinto de orientação, sempre voltam para os seus ninhos, assim como tantas aves migratórias que, com seus dons inatos de navegação, são capazes de se nortear pela posição do Sol ou o campo magnético da Terra para saber onde estão e aonde devem ir. Nós seres humanos precisamos da ajuda de tecnologia.

Há milênios, essas aves são utilizadas para carregar mensagens leves amarradas a uma pata, às vezes por distâncias de centenas de quilômetros. Foram empregados durante várias guerras em diversos lugares do mundo para carregar informações secretas de forma despercebida, da linha da frente para a base, por exemplo.

Antonio imaginava que a pomba fosse embora depois de alguns dias, mas não. Ela se sentia em casa! Se acomodou nas redondezas, parava no telhado, acompanhava todo o movimento da casa. Depois de alguns dias, ele instalou uma caixa de madeira embaixo do beiral, fora do alcance dos gatos, e ela logo tomou posse. 

… A pomba branca, símbolo internacional da paz e da esperança, acabou sendo também uma professora de vida…

Em uma demonstração da perspicácia e do poder de raciocínio dela, não demorou para aprender qual era a janela do quarto de casal. Substituindo o despertador, ela batia o bico na janela bem cedo todas as manhãs para avisar que estava na hora de acordar.

Com o passar do tempo, a pomba ficou cada vez mais confiante no novo lar e adorava estar juntinho às pessoas. Quando a família convidava os amigos para um churrasco, ela participava, parando no chão ao lado dos cachorros que, por sua vez, estavam mais interessados na carne assada. 

De vez em quando, ela sumia de casa por alguns dias e então, retornava. Após uns quatro anos, ela voou e nunca mais voltou. Porém, ela deixou um legado importante.

No decorrer dos anos em que conviveu com a família, a pomba conscientizou Antonio. Antes de conhecê-la, ele nunca tinha parado para refletir a fundo sobre a inteligência dos bichos, muito menos a de um pássaro que, pelo tamanho da cabeça, tem um cérebro bem pequeno. 

Atônito com a esperteza da pomba, sua capacidade de aprender e mesmo o companheirismo, ele concluiu: “se uma ave, com um cérebro tão miúdo, tem tanta sensibilidade e inteligência, os bichos maiores não seriam igualmente ou muito mais sensatos?”

Desde então, Antonio parou de criar porcos para o abate. A pomba branca, símbolo internacional da paz e da esperança, acabou sendo também uma professora de vida. O ensinamento da pomba viva chegou como resultado de uma imagem talhada por acaso por sua própria mão.

Algum tempo depois, ele buscou a placa de basalto. Instalou no jardim de casa onde, até hoje, serve de bebedouro e de banheira para as aves.

o meio da grama ressecada da chácara, reluzia um ovo. Um ovo solitário, branco, destacado como uma pérola perdida na areia. 

Como será que chegou intacto nesse lugar, no meio do descampado, onde não havia árvores por perto? Seguramente, não caiu do ninho. Talvez um predador – um gavião, um tucano, um teju, um mico? – roubou o ovo. Por algum motivo, que nunca saberemos, o deixou cair.

Quem seriam os pais desse ovo? Qual passarinho ia nascer?

… Os filhotes das aves se desenvolvem rapidamente. Em pouco tempo, o recém-chegado se transformou em uma bolinha branca, fofa…

Pensando que o ovo deveria estar “morto”, Jorge, o dono da chácara, o pegou com cuidado. Ficou matutando se ele realmente deveria levá-lo embora para casa. Afinal, faz parte do ciclo natural as aves perderem ovos que são comidos por outros bichos, que também dependem dessa fonte de alimento. Mas a curiosidade sobre a origem do ovo falou mais alto. Sem botar muita fé que o ovo eclodiria, colocou na chocadeira onde já havia alguns ovos de galinha.

Um belo dia, para sua grande surpresa, a casca rachou e surgiu o filhote desajeitado. Quase todo o corpo era careca, a pele delicada, penas encapuzadas estilo punk esperando para nascer. Os globos oculares eram protuberantes, fechados, e o biquinho bem curvado muito diferente do bico pontiagudo dos pintinhos de galinha e de outras aves. 

Os filhotes das aves se desenvolvem rapidamente. Em pouco tempo, o recém-chegado se transformou em uma bolinha branca, fofa. Jorge reparou que os olhinhos estavam bem para frente, na cara, diferente dos filhotes de outras aves, que estão nas laterais da cabeça. Passados mais alguns dias, quando ele examinava o filhote de perto, caiu a ficha. Era uma coruja! 

Ela mostrou ter uma forte personalidade. Virou a mandachuva da casa. Morava no jardim de inverno entre galhos e plantas, com uma porta de vidro aberta para a sala.

Como o ovo foi achado no chão, Jorge supôs se tratar de uma coruja-buraqueira. Essa espécie de coruja é muito comum em áreas abertas do Cerrado, sejam urbanas ou no campo. É uma corujinha que cava um ninho subterrâneo. Ela monta guarda ao lado do buraco o dia todo em pleno sol e é muito fácil de encontrar em Brasília e em todo o Distrito Federal. 

Com o tempo, a plumagem branca mudou de cor. Ficou acinzentada com padrão claramente listrado, bem diferente de uma coruja-buraqueira. Era outra espécie, então! A conclusão era de que se tratava de uma corujinha-do-mato. Ganhou o nome de Piu.

Os olhos amarelados acompanhavam todos os passos do Jorge. Como ele foi o primeiro ser vivo que ela viu na vida, e dava pedacinhos de carne crua para ela comer, ela achava que também era um ser humano. O filhote era totalmente dependente de uma família humana, a corujinha – ele não sabia como devolver para a natureza.

Com o decorrer dos meses, Piu mostrou ter uma forte personalidade. Virou a mandachuva da casa. Morava no jardim de inverno entre galhos e plantas, com uma porta de vidro aberta para a sala. Voava livre pela casa e pousava nos ombros de todos como se fosse um papagaio de pirata! Às vezes, se escondia atrás das almofadas do sofá, por exemplo. Para encontrá-la, o pessoal chamava “piu, piuuuuuu” bem alto e ela respondia, curto e bem baixinho, “piu”. 

Piu viveu e se divertiu como membro da família durante muitos anos. Nunca teve a curiosidade de ir embora, apesar de saber voar. Em vez de ser largado lá na grama e virar refeição de algum bicho, o ovo misterioso gerou uma vida surpreendente.